segunda-feira, 14 de março de 2011

Morreu Félix de Guarania, poeta paraguaio


 

Neste 14 de março de 2011, Félix Giménez Gómez, 86 anos, morreu nos arredores de Assunção, Paraguai, como queria, "con la pluma en la mano".
Sua obra inclui poemas, contos, textos para teatro. Como tradutor, desvendou em guarani de Shakespeare a Maiakoviski. Durante toda a vida, mesmo quando exilado pela ditadura de Stroesner durante 26 anos, nunca abandonou sua luta pela cultura paraguaia e pela defesa da língua guarani.

Em homenagem à sua figura, reproduzimos "O Dom Quixote Guarani",
reportagem de Daniel Cassol, publicada no jornal "Brasil de Fato", em 2009
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O Dom Quixote guarani

“Para alguns, o guarani é um obstáculo. Atribui-se a ele o entorpecimento do mecanismo intelectual e a dificuldade que a massa parece sentir em adaptar-se aos métodos europeus de trabalho. O remédio se deduz óbvio: matar o guarani. Atacando a fala se espera modificar a inteligência. Ensinando uma gramática européia ao povo se espera europeizá-lo”. No início do século XX, o jornalista e escritor anarquista Rafael Barrett, espanhol que viveu no Paraguai nesta época, já percebia que no projeto de dominação do Paraguai constava a morte do idioma nativo.
Porém, neste início de século XXI, estima-se que mais de 90% da população paraguaia ainda fale o guarani “jopara”, mesclado com o espanhol. Idioma de resistência, o guarani permaneceu na cultura do país, ainda que presente apenas nas conversas de camponeses e trabalhadores da capital – o guarani ainda é uma língua dos paraguaios pobres.
Ainda relegado à sua marginalidade, porém, o guarani foi reconhecido como língua oficial do Paraguai em 1992. Agora em 2009, entrou para a lista de idiomas oficiais do Mercosul.
“Custou uma longa luta”, fala um dos principais protagonistas desta batalha pela conservação e difusão do idioma nativo. É Félix Giménez Gómez, de 84 anos, que na sua modesta casa em Lambaré, região metropolitana de Asunción, caminha em passos lentos apoiado pela filha, Mercedez. Mas poucos o conhecem pelo nome completo.
Bengala, longa barba branca, Dom Félix de Guarania, poeta e escritor paraguaio, é o Dom Quixote da cultura guarani. Um homem que desafiou o autoritarismo com a mesma perseverança com a qual hoje supera as limitações de seu corpo que dificultam seu trabalho. Militante comunista, foi perseguido e preso por três ditaduras, e na mais longa delas – a de Alfredo Stroessner – teve de viver 26 anos fora do seu país. Nunca deixou de trabalhar em suas poesias, novelas, ensino do idioma e traduções de clássicos da literatura para o guarani.
O seu mais recente trabalho demorou dois anos para ficar pronto: a tradução de “Dom Quixote de la Mancha”, de Miguel de Cervantes. Segundo Dom Félix, o Museu Cervantino solicitou exemplares do livro – o guarani seria o único idioma para o qual “Dom Quixote” ainda não havia sido traduzido.
“Em guarani, há tudo. Não precisamos de outra língua”, afirma Dom Felix ao ser perguntado sobre como faz para traduzir palavras que não existem no idioma nativo. Defensor da autonomia do guarani, nas suas traduções ele busca sempre uma saída para não recorrer ao espanhol, e dessa posição intelectual critica a forma como historicamente se ensinou o guarani nas escolas paraguaias. “Improvisou-se o ensino, os professores não estavam bem preparados. Havia muita influência do espanhol, o que prejudicava”, diz.
Filho de camponeses pobres, nasceu no ano de 1924 em Paraguarai, interior do país. Teve de interromper seus estudos três vezes – em Medicina, Direito e Letras – por ser preso pelas ditaduras de turno, em razão de sua atuação política.
Exilado na União Soviética em 1968, Felix de Guarania traduziu Maiakovski para o guarani e ensinou o idioma para professores. Suas inúmeras traduções publicadas vão de Shakespeare a Martín Fierro, passando pelo hino da Internacional. Também é autor de poesias, novelas, teatros, dicionários. Nos próximos meses deve lançar um livro de contos para crianças, intitulado “Aprenda guarani lendo”.
Tanto trabalho tem uma explicação: Dom Felix acredita que a permanência e a difusão do guarani devem passar pela criação de uma tradição escrita desse idioma basicamente falado. “O escrito fixa a língua”, afirma.
Com os dedos retorcidos, de tanto utilizar a máquina de escrever em sua vida, Dom Felix também enxerga e escuta pouco. Por isso quase não acompanha o noticiário, além de não gostar dos jornais de hoje em dia, cheios de publicidade e que só falam em futebol. As limitações da idade o obrigaram a desenvolver um custoso método de trabalho, que consiste em ditar seus trabalhos para a filha Mercedez, sua assistente e divulgadora do seu trabalho. Foi assim, por exemplo, que Dom Felix traduziu o “Dom Quixote”.
Mas essa dificuldade particular parece não lhe incomodar. Os olhos de Dom Felix chegam a brilhar quando fala do guarani, que considera “o ponto de união de vários países da América do Sul”. Ao repórter brasileiro, fala das semelhanças entre o guarani paraguaio e o tupi-guarani. E se alegra ao traduzir nomes de cidades, rios e lugares brasileiros.
domfelix
“O guarani se manteve forte no Paraguai porque se produziu a mestiçagem. Os filhos de espanhóis com mulheres indígenas ficavam com as mães. As crianças aprenderam primeiro o guarani”, explica Dom Felix, que também diz haver um preconceito histórico contra o idioma. “O guarani foi uma língua marginalizada. Mães e pais não queriam que seus filhos falassem, porque achavam que o guarani os rebaixava socialmente”, conta.
Lutador da palavra, Dom Felix não perde de vista a luta social. Tanto que em novembro de 2008 filiou-se ao Partido do Movimento ao Socialismo (P-MAS). “Sigo sempre na luta”, diz.
Incansável, trabalha em um projeto no mínimo ousado: um dicionário etimológico no qual pretende explicar a origem e o significado das palavras em guarani. O livro já está com cem páginas – e isso que Dom Felix acaba de terminar a letra “A”. O tempo, para o Dom Quixote guarani, parece ser mesmo uma mera convenção.
(*) Publicado no Brasil de Fato de 2 de julho de 2009

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