terça-feira, 14 de julho de 2009

TEATRO DE RUA

O teatro de rua, uma das manifestações mais antigas de cultura popular, traz na bagagem séculos de histórias e influências que vão dos folguedos do Nordeste às máscaras dos espetáculos medievais


É permitido comer e beber durante o espetáculo, dá para sair no meio e até para contracenar com os atores. Só não vale achar que teatro de rua é menos teatro só porque à primeira vista pode parecer pouco planejado. Pelo contrário. São séculos e séculos de tradição nessa que é uma das mais antigas manifestações populares. O próprio teatro originou-se na rua, ou quase isso. “O surgimento do teatro se dá no espaço público”, explica o professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Campinas (Unicamp), Rubens José Souza Brito, participante do Três Vezes Rua, evento que reuniu debates, aulas-espetáculo e oficinas como parte do projeto Reflexos de Cenas, do Sesc Consolação (veja boxe Nas ruas da cidade). “Não podemos falar exatamente em rua, que ainda não existia; sem dúvida, ele nasceu no seio da comunidade, antes mesmo do estabelecimento do teatro grego. Mas é como a história do leite: a criança que nasce e cresce na capital acha que ele vem da caixinha.”

O conceito de teatro de rua, como o conhecemos hoje, é marcado por uma intenção explícita de criar encenações para ser apresentadas no espaço público. Essa é sua principal característica. “Acabamos encontrando vida eterna no teatro que se faz nas ruas ou em qualquer outro lugar onde a platéia seja formada pela diversidade humana, sem as divisões que a estratificação social quer ter”, comenta o encenador Amir Haddad. “É o antigo mundo novo revisitado. O melhor ator dos palcos pode quebrar – e quebra – a cara na rua. Assim como o cenógrafo e o dramaturgo”, conclui. Ao longo da história, com o surgimento do que os especialistas chamam de edifícios teatrais – ou seja, as casas de espetáculos, das mais variadas formas e tamanhos –, a rua consolidou-se como uma escolha, e não necessariamente uma ausência de alternativa, como muitos podem pensar. “O compromisso que a gente tem com o teatro de rua não é uma falta de opção, muito pelo contrário”, afirma o ator e diretor João Carlos Andreazza, ex-integrante do grupo de teatro Fora do Sério.


Celeiro nordestino
O primeiro registro de teatro de rua contemporâneo no Brasil data de 1946, uma iniciativa que envolveu nomes como Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna. A partir desse momento, a história de tal manifestação encontra parada obrigatória também em 1961, com a criação do Movimento de Cultura Popular (MPC), em Pernambuco – por Paulo Freire e o próprio Suassuna, entre outros –, e pelo surgimento, no mesmo ano, do Centro Popular de Cultura (CPC), da União Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, capitaneado por Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha. Além destes, há o aparecimento do Grupo Tá na Rua, de Amir Haddad, e do Ventoforte, de Ilo Krugli, em 1974, também no Rio – o grupo de Ilo Krugli se mudaria, em 1981, para São Paulo, onde está até hoje –, e a criação, em 1976, do Grupo de Teatro Mambembe, numa iniciativa do Sesc São Paulo, por meio da unidade Consolação, com direção de Carlos Alberto Soffredini. Esse trabalho demandou oito meses de pesquisa em fontes fundamentais para o teatro de rua, com destaque para o circo-teatro – formado por companhias de artistas autodidatas que percorriam a periferia das grandes cidades em pavilhões de lona – e culminou na superprodução Dom Quixote de la Mancha, uma adaptação da obra de Miguel de Cervantes, com 16 atores no elenco, figurinos que misturavam influências do circo-teatro e da commedia dell’arte – gênero surgido na Europa no século 6º, famoso pelo uso de máscaras que identificavam os personagens – e uma platéia que chegava a 2 mil pesoas, segundo o professor Souza Brito.


Todas as linguagens
Entre as influências na estética do teatro de rua, além da já citada commedia dell’arte, é forte a presença da exuberância visual do circo tradicional e a incomparável habilidade de comunicação de manifestações populares como o maracatu – folguedo nordestino, sobretudo da região de Pernambuco. “É possível usar várias formas de linguagem no teatro de rua”, explica o ator e diretor João Carlos Andreazza. “A da commedia dell’arte, por exemplo, é interessante porque o figurino e as máscaras identificam rapidamente para o público passante o tipo de personagem que está sendo desenvolvido durante a encenação. O que é muito importante, uma vez que no teatro de rua o público não necessariamente acompanha a peça toda.” Andreazza explica ainda que outra particularidade do gênero é o uso de códigos não verbais. Por exemplo: gestos da mímica no lugar de palavras e até as circenses pernas-de-pau, que servem para fazer a personagem crescer em cena, literalmente. “Essas linguagens são muito atrativas para o público e importantes para o ator de rua”, afirma.

O professor Rubens José Souza Brito acrescenta que o figurino também merece atenção especial. “As cores, o tecido, tudo é importante”, explica. “E isso é bebido também nas fontes de vários eventos da cultura popular. Por exemplo, o vilão entra de preto, a mocinha de cor-de-rosa, a ‘mãezona’ popular entra com vestido de chita todo colorido.”


Proximidades
Os papéis de público e atores também sofrem interessantes mudanças no teatro de rua em relação ao encenado no edifício teatral. A ausência do palco aproxima os lados, enquanto o tom de constante intervenção permeia as apresentações. Afinal, se por um lado um espetáculo pode mexer com o cotidiano da cidade e seus transeuntes, por outro esses mesmos passantes podem – e vão – intervir nas cenas. “Não raro alguém ‘invade’ a história e começa a participar dela”, conta Marcos Pavanelli, do Núcleo Pavanelli de teatro de rua. “Alguns querem mesmo participar da cena, e a gente deixa, claro que tentando conduzi-lo até um determinado limite para não atrapalhar a apresentação. O que ocorre muitas vezes é que a pessoa quer chamar a atenção também, então é só você dar a ela a oportunidade, que depois ela se sente satisfeita e até nos ajuda a controlar os mais empolgados, tomando conta da roda.”
Esse movimento, por sua vez, contribui para a relação do cidadão com a cidade, uma vez que, quando um indivíduo assiste a um espetáculo na praça, ele está também usufruindo um espaço público de convívio urbano. “Partindo de uma reflexão de Hannah Arendt [teórica política alemã que viveu de 1906 a 1975], o espaço público é constituído pelo discurso e pela ação”, afirma o diretor Dorberto Carvalho, também presente no evento do Sesc. “Ou seja, é a convivência de todos numa praça ou mesmo nas ruas que faz com que elas sejam efetivamente de todos. E o teatro de rua é um dos instrumentos para isso.”


Nas ruas da cidade - Atividades nas unidades Consolação, Pinheiros e Santo Amaro colocaram em foco as diversas faces do teatro
O mês de maio foi todo dedicado ao teatro de rua nas unidades do Sesc São Paulo. No Sesc Consolação, o evento Três Vezes Rua – realizado como parte do projeto Reflexos de Cenas – promoveu debates e palestras, ofereceu aulas-espetáculo e oficinas, e apresentou intervenções artísticas e espetáculos que, juntos, reuniram alguns dos mais conceituados nomes do gênero, como os dos diretores Amir Haddad e Alexandre Roit (na foto em cena da peça Pelada na Rua), e os grupos Tablado de Arruar e Teatro de Anônimo. Já a programação do Sesc Pinheiros destacou a pesquisa teatral, a interação com o público e a transformação do espaço cênico – algumas das principais características do teatro de rua – com os espetáculos As Bastianas, da Cia. São Jorge de Variedades, A Revolta da Chibata, do Teatro Popular União e Olho Vivo, e Reis da Fumaça, da Companhia do Feijão. Por fim, no Sesc Santo Amaro foi a vez de os grupos de teatro locais mostrarem sua arte no evento Ensaio Geral, que pretende futuramente contemplar outras manifestações artísticas, como a dança, a música, as artes plásticas e a cultura digital.


Político desde os primórdios - O teatro de rua sempre foi uma das manifestações preferidas para protestar por meio da arte
A ligação do teatro de rua com manifestações de caráter político e social é antiga. No século 20, o namoro vem desde as primeiras décadas, quando grupos de artistas revolucionários russos saíram às ruas, após a vitória bolchevique de 1917, para difundir e fazer propaganda de suas idéias sociopolíticas. Os ecos dessas manifestações, que receberam o nome de agit-prop – do russo agitatsiya-propaganda (agitação e propaganda) – foram ouvidos aqui no Brasil primeiramente no Nordeste, por um grupo de artistas e intelectuais do porte de Ariano Suassuna, Hermilo Borba Filho e Paulo Freire, entre outros, que criaram, em Pernambuco, o Movimento de Cultura Popular (MCP) em 1961. Embora Suassuna já tivesse protagonizado, junto com Borba Filho, a primeira iniciativa de teatro de rua no Brasil em 1946, foi só dessa vez que essa manifestação artística apareceu como instrumento para mudanças sociais. “O MCP levava para a periferia da capital pernambucana várias ações educacionais, artísticas e até de saúde”, explica o professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Campinas (Unicamp) Rubens José Souza Brito. “Essas atividades envolviam artesanato, artes plásticas, cinema, música, canto, dança, literatura e, por fim, teatro, que se chamava Teatro do Arraial Velho. E, além dele, havia também o Teatro do Povo, que atendia o entorno da cidade.” No mesmo ano de 1961, a MCP inspirou a criação do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), dirigido por Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha. “O CPC era famoso por levar às ruas assuntos atualíssimos da política nacional”, explica o diretor de teatro Dorberto Carvalho. “E se eles fossem às ruas num dia e a polícia os tirasse de lá, à força muitas vezes, na semana seguinte eles estavam de volta com uma peça sobre o confronto ocorrido.” Em 1964, com o golpe militar que instituiu a ditadura no Brasil, o CPC foi dissolvido, entrando para a história como o grupo-símbolo da união dos conceitos de teatro de rua e teatro de resistência.

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